Sabe quando tudo se alinha e as condições ideais aparecem? Pois bem, na última semana foi assim aqui em casa. Freezer cheio, fruto de duas compras coletivas e de uma novilha abatida na fazenda, achei que era uma boa oportunidade para mostrar para vocês como eu monto (ou pelo menos, tento montar) as refeições da Kira, minha companheira canina, por sete dias. Até porque sempre surgem dúvidas sobre a minha abordagem com meus próprios cães e pacientes.
Quem já me acompanha por aqui sabe como sou defensor de dietas bem flexíveis e do “feito, melhor que perfeito”. Há muito tempo não oferecia tanta variedade para ela, que ela gosta e tolera muito bem. Verdade seja dita, com as complicações de 2020, não foram incomuns semanas seguidas de frango, fígado e carne bovina moída…
Em outras palavras, é bem improvável que vou conseguir manter esse patamar de variedade e comprometimento ao longo do tempo. E tá tudo certo. O simples, bem feito, vai longe. Mas vale como inspiração, para vocês e para mim, para tentar fazer sempre o melhor, dentro do contexto individual de cada um.
Considere que o que funciona para mim e para Kira não é necessariamente o que vai funcionar para vocês. Recomendo que testem e encontrem um formato de dieta prático, que vá de encontro aos seus estudos e valores, orientando-se com uma avaliação de resultados bem objetiva.
UMA INTRODUÇÃO
A Kira é uma cadela da raça Boiadeiro Australiano, com quase 8 anos de vida. Foi adotada com aproximadamente 1 ano de vida, já castrada, após o primeiro cio.
Ela é absolutamente tranquila e relativamente pouco ativa ao longo do dia. Mora atualmente sozinha comigo numa casa com quintal amplo e faz atividade física diariamente por 30 a 60 minutos. Principalmente caminhadas, corridas leves e brincadeiras de busca na água, os preferidos dela.
Ela é portadora de leishmaniose visceral canina há mais de 5 anos (sob controle) e tem doença degenerativa no ligamento cruzado cranial do joelho direito. Acredito ser consequência de uma sequela anatômica de uma fratura cominutiva na tíbia direita, motivo que levou ao seu abandono pelo proprietário original.
Desde quando foi adotada, é alimentada com uma dieta bioapropriada baseada em carnes, vísceras e ossos crus. Sempre se deu muito bem com ela, com muito raros eventos gastrointestinais (geralmente associados a alimentos que ela mesma encontra).
Ela faz exames de urina e ultrassonografias periodicamente, com bons resultados, e não faço restrição de purinas na dieta dela. Esse é um cuidado que geralmente tomo com cães que recebem o medicamento leishmaniostático alopurinol, para evitar cálculos urinários. Mas com ela, não vejo necessidade atualmente.
Atualmente ela pesa 18kg, mas ficaria um pouco melhor com 17kg… Com muito apetite, pouca seletividade e metabolismo extremamente eficiente (tendência a ganhar peso), ela ganha pouca comida, estimada em aproximadamente 500gr diários, ofertados uma única vez, no final do dia. Observe nos descritivos das refeições que isso não é fixo. Eu pesei todo o alimento durante essa semana para dar uma idéia melhor para vocês, mas costumo ir no olho, tudo certo se ela receber 400gr num dia e 600gr no outro.
Ter praticidade com a alimentação dela é minha prioridade. Raramente recebe os mesmos alimentos e proporções todos os dias. Mas tento manter, o longo do tempo (semanas ou meses) uma proporção similar a que divulgo na minha apostila digital. Vocês vão ver que, mesmo medindo “no olho”, as proporções finais ficaram bem aproximadas!
De forma geral, combino diariamente alimentos que tendem a dar mais textura e rigidez à fezes (ossos e material fibroso) com alimentos que tendem a soltar mais (carnes, vísceras, ovos e peixes).
O custo não é um limitante no momento. Para ser honesto, no dia-a-dia, tenho pouquíssimo controle de quanto estou gastando com a comida dela. Mas também não há motivos para oferecer uma dieta cara. Até porque os alimentos mais baratos costumam ser os mais nutritivos.
Deixo algumas tabelas com a variedade e valores no final desse texto para vocês, que gostam de números, se divertirem. Foi bom saber que não estou extrapolando o orçamento que imaginava. Na prática, fica aproximadamente o mesmo valor que gastaria com um alimento comercial seco de qualidade superior (cálculo estimado baseando-se no custo da ração Farmina N&D Prime Cordeiro e Blueberry).
Tenha em mente que as fotos, apesar de representarem exatamente as quantidades que ela recebeu no dia, não refletem como a comida é oferecida. É bem mais bagunçado, cães não ligam para a apresentação dos pratos. E alguns alimentos são melhor aceitos picados ou misturados com outros, evitando seletividade.
SEGUNDA-FEIRA
Membro e costela de coelho (osso carnudo) - 192gr
Sardinha inteira (com cabeças vísceras e escamas) - 120gr
Mexilhão inteiro sem concha, pré-cozido - 52gr
Ovo de galinha, sem casca - 57gr
TOTAL = 421gr
Os três primeiros alimentos são os que a Kira menos gosta, por isso ofereço os três juntos, na mesma refeição, evitando seletividade. O ovo, que ela adora, ajudar a melhor a palatabilidade dos três. Na maioria das dietas que prescrevo, a sardinha inteira entra como osso carnudo, porque a quantidade “extra” de carne e vísceras, numa inclusão limitada, acaba sendo insignificante. Mas como ela tende a soltar as fezes, gosto de combiná-la com outros ossos carnudos (no caso, foi o coelho).
Dicas:
1. Ofereça alimentos que o seu animal tem menos interesse bem misturados com algo que ele adora (ovos, lácteos ou carne moída, por exemplo).
2. Ofereça algo entre 5 e 10% de peixes e frutos do mar na dieta, que são ricos em nutrientes difíceis de encontrar em outros alimentos. Costumam ser baratos e uma das poucas oportunidades de oferecer presas inteiras ao cães.
TERÇA-FEIRA
Focinho bovino cru (com couro e pêlo) - 260gr
Carne bovina (músculo) - 224gr
Coração bovino - 44gr
Esófago bovino - 48gr
Cérebro bovino - 23gr
Baço bovino - 42gr
Kefir - 25gr
Amoras - 20gr
TOTAL = 686gr
Gosto, de forma infrequente, de oferecer refeições sem ossos, refletindo um episódio que deve ser comum na natureza. As fezes do dia seguinte tendem a sair um pouco mais amolecidas, mas a Kira tende a tolerar uma refeição do tipo muito bem, e não me incomodo com essa mudança. Uma abordagem para tentar minimizar esse impacto é oferecer outros tipos de material com baixa digestibilidade, animais ou vegetais. No caso, escolhi o focinho bovino, que além de musculatura rica em colágeno, tem o couro e pêlo, e um pouco de amoras. Alguns animais precisariam de uma porção maior de vegetais.
Dicas:
1. Tente oferecer partes de animais com baixa digestibilidade (pêlo, couro, casca, tendões), para simular uma dieta ancestral. Atualmente é fácil comprá-los desidratados, mas se conseguir encontrá-los crus, ainda melhor.
2. Em refeições sem ossos, ofereça um pouco mais de material vegetal, para manter as fezes em escore adequado.
3. Ofereça o máximo de variedade de vísceras que encontrar. Esse é um dos investimentos de maior retorno na dieta.
QUARTA-FEIRA
Cabeça de pato - 177gr
Peito de peru sem osso - 143gr
Conserva de maxixe (lacto-fermentação natural) - 20gr
Ovo de galinha - 60gr
TOTAL = 400gr
A cabeça de pato tem um visual impactante, mas é um osso carnudo que tenho usado com alguma frequência. Tem pouca carne, mas gosto da idéia de que possui algumas vísceras “escondidas” ali, como olhos, cérebro e língua. Para evitar constipação, pode ser oferecida com uma quantidade maior de vísceras. Mas aqui incluí peito de peru, corte facilmente encontrado atualmente nos supermercados (diferente do embutido fatiado), maxixe lacto-fermentado, que preparei aqui em casa, e um ovo, para certificar que ela ia comer o maxixe, que sozinho, seria deixado pra trás.
Dicas:
1. Evite usar somente ossos carnudos com pouca carne, como cabeças e pés de aves, mesmo que sejam baratos. Usados frequentemente, podem levar à constipação. Quando oferecê-los, compense com mais carne desossada ou vísceras.
2. Fermentar vegetais em casa é mais fácil do que parece. É uma excelente maneira de aumentar a digestibilidade deles para os carnívoros, e são ótima fonte de pré e probióticos, muito mais ricos e diversos do que produtos comerciais.
QUINTA-FEIRA
Costela bovina - 108gr
Músculo bovino - 130gr
Bexiga bovina - 48gr
Fígado bovino - 60gr
Rim bovino - 80gr
Kefir - 20gr
TOTAL = 446 gr
Como cadela de médio porte, a Kira encara muito bem alguns ossos carnudos bovinos. A costela, cortada em ripas maiores que um palmo, é uma opção prática e relativamente barata. Rabo, osso do peito e coluna são outros cortes que poderiam entrar aqui.
Gosto de oferecer máximo de carne bovina que o bolso permite. Pessoalmente, vejo que a Kira fica melhor com mais bovino na dieta, e percebo isso nos meus pacientes no consultório também.
Dica
1. Não tenha medo de experimentar a oferta de ossos carnudos maiores e mais duros para seu cão, como ossos de bovinos, suínos e ovinos. Mantenha sempre a supervisão. Muita gente se surpreende como cães bem pequenos lidam muito bem com ossos mais intimidadores. Faça o teste, mantendo a supervisão.
SEXTA-FEIRA
Coxa de frango - 103gr
Aparas de atum - 175gr
Moela de frango - 128gr
Ovo - 58gr
Abacate - 20gr
Salsa picada - 2gr
TOTAL = 486gr
Mas por vários períodos do ano, pelo valor e praticidade de encontrar em qualquer lugar, ofereço bem mais frango. E quando consigo encontrar outros animais, aproveito para reduzir bem sua oferta. Não tem nada de errado em oferecer frango com mais frequência, e por mais que não acredite no “descanso de frango”, não acho um boa idéia oferecer essa espécie todos os dias.
Combinar o frango com peixes marinhos, é uma forma interessante de tentar trabalhar melhor um equilíbrio entre os ácidos graxos ômega 6 (rico nos animais de criação convencional, que comem ração) e ômega 3 (rico em animais selvagens e de pastejo). Para quem oferece frango com muita frequência, recomendo retirar a pele, para melhorar esse equilíbrio.
Também não uso atum com muita frequência na dieta dela, mas não gosto de jogar comida fora. Essas aparas eram de um atum de 3kg que comprei para o meu consumo, e iam para o lixo, junto com a cabeça e espinhas, que são muito grandes ou afiadas, e não muito seguras para a maiorias dos cães. Assim, limpei a carcaça o máximo que pude e consegui um alimento super rico em nutrientes, com custo praticamente zero.
Dicas:
1. Ofereça sim o frango com frequência! É um animal de fácil acesso, barato e extremamente bem tolerado. Mas evite usar todos os dias, e retire a pele, se isso acontecer, para melhorar o equilíbrio entre os lipídeos da dieta.
2. Não jogue comida fora. Aparas, carcaças cruas, vísceras de animais obtidos inteiros, alimento “queimado” por congelamento… Todos são adições valiosas e “gratuitas” no prato do seu cachorro.
SÁBADO
Pés de pato - 64gr
Pescoço de pato - 102gr
Fígado de pato - 166gr
Músculo ovino moído - 84g
TOTAL = 416gr
É interessante combinar ossos carnudos com mais ossos do que carne (pé e pescoço) com maiores quantidades de vísceras, especialmente as mais ricas, como o fígado. Assim, a gente consegue uma melhor textura de fezes, evitando constipações e diarréias. O ovino entrou aqui como uma variedade extra. Por 40 reais o Kg, foi a carne mais cara incluída nessa semana. Não é protagonista da dieta dela, mas como fiz um cozido pra mim no dia anterior com a carne, separei um pouco pra ela, para fazer uma “graça”.
Dicas:
1. Aproveitar um pouco de alimento que compramos para consumo humano para aumentar a variedade (aproveite aparas, antes de serem temperados e cozidas)
2. Variedade entre as espécies não precisa ser proporcional. Melhor incluir ovino uma vez no mês do que nunca oferecer. Lembre-se, feito é melhor que perfeito.
DOMINGO
Vértebra bovina - 511gr (-83gr de ossos residuais não consumidos) = 428gr
Dobradinha bovina verde - 171gr
Manjubas inteiras - 40gr
TOTAL = 639gr
Sempre que abatemos gado na fazenda, toda a dobradinha (estômagos do animal), que seria descartada, é aproveitada para os cães. Apenas lavo, pico e congelo. O cheiro e o aspecto são terríveis, mas eles parecem adorar. Inclusive, quando a gente enterrava, era comum eles desenterrarem para comê-la. E teria alguns benefícios interessante também (pré e probióticos).
Para arrematar a refeição, algumas manjubas e uma vértebra bovina, com muita carne. Adoro o corte porque é um “híbrido” entre osso carnudo e recreativo. A Kira não consumiu a peça inteira, e parte do osso que sobrou foi descartado depois de uma hora de diversão.
Dicas:
1. Quando oferecer ossos recreativos, reduza um pouco o tamanho da refeição, talvez até omita os ossos carnudos.
2. O que pode ser nojento para você, pode ser extremamente interessante (e nutritivo) para o seu cão. Não humanize seu animal nem projete nele suas restrições e dificuldades ao lidar com certos alimentos.
COMPLEMENTOS
Além dos alimentos descritos anteriormente, a Kira recebeu, diariamente, alguns complementos, os quais considero alimentos e não suplementos. Não são essenciais para adequação nutricional, mas ajudam com os probleminhas que ela enfrenta e trazem mais variedade para a dieta. O óleo de fígado de bacalhau é uma adição onerosa que, para restrição de custos, poderia ser totalmente omitida, considerando que ela já recebe peixes inteiros marinhos.
1 colher de chá (5gr) de manteiga de búfala com sal
1 colher de chá (5ml) de óleo de fígado de bacalhau (da marca Garden of Life)
1 colher de sopa (10gr) de um mix de ervas secas, sementes, algas e cogumelos triturados que fiz há algumas semanas atrás, que continha, em proporções aproximadamente iguais (em volume), os seguintes ingredientes:
Linhaça
Chia
Sementes de abóbora
Sementes de girassol
Sementes de gergelim
Castanha-do-Pará
Avelã
Gengibre em pó
Tomilho seco
Alecrim seco
Orégano seco
Alga Nori seca
Cogumelo Shitake seco
Dicas:
1. Evite óleos vegetais. Algumas sementes oleaginosas são mais seguras que o óleo extraído delas.
2. Alimentos oleosos fornecem mais que ácidos graxos. O óleo de fígado de bacalhau é boa fonte de vitaminas A e D. E a manteiga de búfala salgada é fonte de iodo e vitamina K2.
3. Uma mistura de sementes e temperos secos pode ser uma adição prática de vegetais para uma dieta essencialmente carnívora, contribuindo com fitoquímicos, antioxidantes, vários minerais e um pouco de fibras.
SUPLEMENTOS
Para ajudar com a doença articular crônica que ela desenvolveu, ela recebe diariamente, mas com períodos de suspensão a cada 3 ou 4 meses, os seguintes suplementos. Eles não integram a dieta dela, e não são considerados nos custos.
1 comprimido do condroprotetor Food Science of Vermont Sea Mussel Plus, com Perna Canaliculus, Glucosamina, MSM e DMG.
1 cápsula do extrato de açafrão-da-terra, Source Naturals Turmeric with Meriva
Dicas
1. Não use suplementos sem a necessidade.
2. Não use nutracêuticos de forma contínua. Sua rotatividade ou mesmo suspensão ocasional pode potencializar a ação e permitir a avaliação da sua real necessidade ao longo do tempo.
TABELA DE PROPORÇÕES POR TIPO DE ALIMENTO
TABELA DE PROPORÇÕES POR ESPÉCIE ANIMAL
(apenas carnes, ossos, vísceras e animais inteiros, excluídos alimentos extras - ovos, lácteos e óleos, e vegetais)
TABELA DE CUSTOS APROXIMADOS POR ALIMENTO
Conheça também minha videoaula e apostila digital sobre ALIMENTAÇÃO NATURAL BIOAPROPRIADA:
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