Particularidades e novas possibilidades
A leishmaniose visceral canina (LVC) é uma endêmica realidade aqui em Belo Horizonte há décadas, mas também em outras cidades do Brasil e do mundo. Enquanto não aprendemos a enfrentá-la com mais tranquilidade e responsabilidade, ainda lidamos com muito sofrimento, para cães e tutores. Mas podemos mudar essa história. E um dos primeiros passos é entender melhor as necessidades nutricionais desses pacientes.
É perceptível o aumento do interesse pelo tema e já tive a oportunidade de palestrar algumas vezes para grupos de veterinários. Apesar disso, de forma alarmante, ainda recebo no consultório muitos tutores que, ou não tiveram nenhuma orientação nutricional para seus cães, ou foram estimulados a adotar regimes alimentares absurdos, contra-produtivos para o controle da doença e para o cão de maneira geral.
A leishmaniose visceral canina é uma protozoose zoonótica de distribuição endêmica em vários lugares do mundo. É causada pelo protozoário Leishmania infantum (chagasi) , sendo transmitida no Brasil pela picada flebotomíneo Lutztomyia longipalpis (mosquito-palha) contaminado. Afeta principalmente o cão, mas pode contaminar outras espécies, como felinos, canídeos silvestres, roedores e o homem. É considerada incurável, mas passível de tratamento e manejo clínico, com boas chances de recuperação e expectativa de longevidade normal, com boa qualidade de vida.
Os sinais observados na doença são majoritariamente de origem imuno-mediada, decorrente da deposição de complexos antígeno-anticorpos em diferentes tecidos (capilares da pele, rins, olhos, articulações). Podemos resumir que o paciente doente sofre de uma inflamação crônica sistémica decorrente de sua própria resposta imune humoral. Para controle da doença, o mecanismo mais importante utilizado pelo organismo é a imunidade celular do tipo th1, e não a produção de anticorpos, diferente do que acontece em várias doenças virais, por exemplo.
Gosto de apresentar a doença como um ótimo exemplo de aplicação do modelo de medicina funcional. É muito perceptível no consultório como um animal que recebe investimento nos quatro pilares da saúde (dieta, exercícios, ambiente adequado e estímulos mentais) responde de forma muito melhor à exposição ao protozoário. Pacientes com tutores que fazem seu “dever de casa” geralmente tem sinais mais discretos ao momento do diagnóstico e se recuperam mais rápido, possibilitando o uso de drogas menos tóxicas.
Sempre que lidamos com pacientes com doenças que requerem a prescrição de dietas terapêuticas, estimulo os colegas e os tutores a manterem a visão do “todo”. Um cão com leishmaniose (ou qualquer outra doença crônica) continua sendo um carnívoro facultativo, e passível das mais diversas doenças se não receber um alimento em acordo à sua especificidade biológica. De fato temos uma incidência alta de doença renal crônica em pacientes infectados. Mas todo cão com LVC é portador de doença renal crônica? Felizmente, e na maioria das vezes, não. E muitos daqueles que apresentam alterações renais, apresentam a doença aguda, que pode ser reversível com o tratamento da doença, e não requerem mudança dietética imediata. Assim, não vale generalizar e alimentar todos os pacientes da mesma forma.
De forma geral, os portadores de LVC precisam de uma dieta de alta qualidade, porque encontram-se emaciados ou estão sob risco de desenvolver caquexia, e precisam de um suporte nutricional para a melhor função imunológica possível.
Boas maneiras de fazer isso é aumentar a quantidade proteínas de alto valor biológico (principalmente de carnes e ovos), atentar-se para o perfil lipídico da dieta (limitar omegas 6) e incorporar nutracêuticos imunoestimulantes, antiinflamatório ou mesmo com atividade leshmanicida direta, demonstrada em estudos preliminares in vivo (roedores). Alguns nomes a considerar, de acordo com a facilidade de acesso e experiência do clínico com seu uso, seriam a quercetina, a berberina, o AHCC (impromune), Agaricus blazei (cogumelo-do-sol), Annona sp. (graviola e araticum, por exemplo) e o óleo de copaíba.
E mesmo que alguma alteração renal de caráter crônico já tenha sido diagnosticada, é muito debatido qual o ponto ideal para se realizar a restrição protéica. Ao contrário do que muita gente acredita, a proteína dietética não causa doença renal, e sua redução não impede sua progressão. Somente pacientes urêmicos deveriam receber restrição protéica, para melhora do bem-estar do paciente, reduzindo os valores de uréia.
Ressalto que a adoção de medidas de nefroproteção, como uma dieta úmida e otimizada em níveis de fósforo, assim como a realização de exames de triagem precoce (SDMA e RPCU), é essencial para evitar que um portador saudável se torne um doente renal crônico no futuro. Os primeiros estágios da doença são silenciosos.
Outro detalhe de atenção importante, que interfere na escolha da dieta, é o uso contínuo o alopurinol, principal droga leishmaniostática usada na espécie. Esse medicamento, também utilizado para a hiperuricosúria e gota humana, é um inibidor da enzima xantina oxidase, essencial para a reprodução da amastigota da leishmaniose (forma que está no animal). Vem daí seu efeito leishmaniostático. O problema é que os cães também precisam da ação dessa enzima para degradação da xantina em outros metabólitos de excreção urinária. A xantina é formada a partir da base nitrogenada purina, presente nos ácidos nucléicos (DNA) de diversas células vegetais o animais. Com a administração do alopurinol, há um aumento da excreção de xantina não degradada na urina, que em concentrações elevadas (e condições de ambiente urinário específicas) tende a se cristalizar e formar cálculos.
Logo, todo paciente que recebe alopurinol deveria receber uma dieta com baixo teor de purinas. E não há no mercado nacional produtos comerciais específicos com essa característica. Daí a necessidade de formular uma dieta caseira baseada primariamente em alimentos que sabemos ter baixa concentração desse composto. Infelizmente, não temos fontes absolutamente confiáveis que mostram a concentração de purinas nos diversos alimentos. É possível (ou até mesmo provável) que ocorra uma variação sazonal e entre os diferentes contextos que um mesmo alimento é produzido. Outra limitação é que essas tabelas geralmente nos entregam a quantidade de purinas por grama de alimento, e não por caloria, o que dificulta ainda mais a montagem da dieta.
Não posso deixar de reforçar aqui que um alimento não deve ser escolhido para compor na dieta unicamente pelo seu teor de purinas, mas sob uma ótica “equacional”, que envolve a avaliação da sua riqueza calórica, nutricional e utilidade à espécie. Em outras palavras, vários alimentos vegetais tem baixo teor de purinas, mas também não tem espaço na alimentação de um carnívoro, que não conseguiria digerí-los e aproveitá-los corretamente. Isso demandaria um aumento da quantidade de alimento, e consequentemente, das próprias purinas, além de comprometer o estado nutricional geral do indivíduo.
Apresento aqui um quadro com alimentos comumente usados em dietas para cães, classificados de acordo com a sua concentração de purinas. É importante combiná-los entre si de acordo com a individualidade de cada paciente, preferencialmente seguindo as recomendações de um veterinário experiente com dietas caseiras. Não recomendo que tutores se aventurem sozinhos na escolha de uma dieta para doenças específicas, e com leishmaniose não é diferente.
. * Base da dieta
. ** Incluir com moderação
. *** Incluir em mínima quantidade
. **** Evitar
Como comentado anteriormente, precisamos de um ambiente urinário específico para a cristalização e precipitação da xantina em urólitos. O passo mais importante para prevenção de urólitos é oferecer uma dieta rica em água, que contribua para um densidade urinária mais baixa. Além disso, é importante nos preocuparmos com o pH urinário. Isso porque a xantina tende a se cristalizar em urina ácida.
Infelizmente, é prática muito comum a suplementação empírica com vitamina C em pacientes com leishmaniose. Essa vitamina, que não é um nutriente de consumo essencial para o cão (ele fabrica a sua própria), acidifica a urina e o predispõe ao problema. O que deve ser feito é justamente o contrário. Devemos mensurar o pH urinário do paciente que recebe o alopurinol com frequência e introduzir alimentos e suplementos específicos para alcalinizar levemente a urina, caso isso seja necessário. Geralmente se busca um pH urinário entre 6,5-7,0.
A avaliação dos resultados do manejo dietético deve ser dinâmica e ininterrupta. Isso envolve uma atenção especial do tutor para notar pequenos sinais clínicos que podem sinalizar o recidiva da doença (ou efeitos adversos da medicação), exames clínicos periódicos no consultório e coleta de material para check-up (hemograma, bioquímica sérica, sorologias, urinálise e ultrassonografias).
E lembre-se, leishmaniose não é um bicho de sete cabeças! Informar-se e manter a proatividade é o melhor a fazer para vencermos esse desafio.
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