Faz parte do ser humano mudar de opinião. E por mais que isso doa num primeiro momento, - ainda mais para defensores apaixonados da sua opinião, como eu - é o único caminho para nos transformarmos em veterinários melhores. Com meu posicionamento em relação à castração, foi exatamente assim.
Concluí minha graduação há aproximadamente 10 anos atrás, e como a maioria dos estudantes de veterinária de hoje, sempre ouvi dentro da universidade que deveríamos estimular a castração dos cães e gatos na nossa prática. Não só era a melhor forma de controlar a crescimento populacional deles nas ruas, problema enorme e não exclusivo do Brasil, como traria inúmeras vantagens em termos de saúde para os próprios animais. Ou seja, me formei com a proposta de castrar o maior número possível de pacientes. Logo me envolvi em campanhas de castração, meu primeiro emprego, trabalho que me deu uma satisfação e senso de propósito que tinha dificuldades para encontrar na profissão naquele momento. Tanto os animais que eram castrados eram beneficiados diretamente, evitando-se os problemas de uma gestação indesejada, como as pessoas envolvidas em proteção animal se sentiam extremamente agradecidas no processo, renovando-se na esperança de um futuro menos sofrido para aqueles seres.
A lua-de-mel não durou para sempre. O primeiro desentendimento com a ideia foi matemático. A medida que me interessava pelo controle populacional através da castração, comecei a estudar como modelos de castração em massa poderiam ser aplicados a diferentes cenários. O que encontrei foi que para a maioria das cidades, o número de animais semidomiciliados que deveriam ser castrados, numa razão de tempo interessante, era algo praticamente impossível de ser realizado com os recursos disponíveis. Não tardei a perceber que o limitante para o sucesso no controle da população de animais de rua não era o número de animais castrados, mas a mentalidade da população e interesses políticos. Aceitei isso e ainda acredito que o dinheiro aplicado em campanhas de castração, na maioria das vezes, seria melhor aplicado em cadastramento animal, fiscalização e aplicação das leis (que já existem) e educação sobre posse responsável, e não em cirurgias.
Mas o que realmente me fez rever meu ponto de vista foi voltar meu interesse para o consultório, seguindo minha carreira como clínico. Com o passar dos anos, observando a incidência das principais doenças no meus pacientes, e desenvolvendo uma visão menos segmentada da saúde e fisiologia, comecei a questionar os pontos que estávamos errando para o crescimento vertiginoso de doenças que há pouco tempo atrás eram incomuns. Câncer, obesidade, problemas ortopédicos, doenças endócrinas. A maioria dos animais que atendia (e atendo hoje) tinha, pelo menos, uma dessa doenças.
Não me iludia que múltiplos fatores pesavam na incidência desses problemas tão complexos, como genética, dieta, ambiente e um estilo-de-vida cada vez mais parecido com o nosso (sofríamos dos mesmos problemas). Mas comecei a perceber que havia uma distribuição diferente deles entre machos e fêmeas, e possivelmente dependentes ao fato de serem castrados ou não. E não demorei a começar a ver referências científicas que corroboravam com a ideia da importância de hormônios sexuais para todo o corpo, e que a supressão deles através da castração poderia se mostrar danosa. Dentro da ótica da medicina funcional, na qual várias doenças são justificadas pelo metabolismo celular inadequado, a homeostase (ou equilíbrio hormonal) passou a ser prioridade. Os hormônios sexuais tem funções muito além das reprodutivas, nunca poderíamos ter nos esquecido disso.
De forma geral, avalio como suficiente o volume de informação para atrelar a castração, especialmente quando realizada de forma precoce (mas não somente), à obesidade (aumento moderado de risco), incontinência em fêmeas (aumento moderado de risco), rupturas ligamentares (aumento moderado de risco), displasia coxofemoral (aumento baixo de risco), e tumores diversos, como linfoma, mastocitoma, osteossarcoma e hemangiossarcomas (aumento baixo a moderado do risco). Existem fatores de confusão para essas doenças como diferenças de incidência entre machos e fêmeas, idade à castração, raça ou porte do animal que ainda devem ser investigados e elucidados. Para outras patologias, como endocrinopatias (hiperadrenocorticismo e hipotiroidismo), problemas comportamentais (fobias e alguns tipos de agressividade), neuropatias (deficit cognitivo senil), doenças imuno-mediadas (lupus, atopia, aumento da susceptibilidade a reações vacinais) e dilatação e torção gástrica há uma sugestão, ainda precoce, de que a castração também pode aumentar a incidência.
Um ponto interessante encontrado em pesquisa recente, foi a existência de alguns artigos que refutam eventuais benefícios da castração precoce, como a prevenção de tumores mamários e problemas comportamentais assim como o aumento da longevidade. Quando aplicamos modelos estatísticos mais rigorosos, o que por muito tempo propagamos como verdade absoluta, volta a estaca de “desconfiança” ou “fraca evidência”. Sem dúvida, uma lição de humildade científica, mostrando como é difícil pesquisar em veterinária, e como o cientista que se dedica a perguntas de menor interesse financeiro da indústria deveria ser mais valorizado.
Como adendo, ressalto que, à exceção da obesidade e alguns problemas urinários em machos, o efeito maléfico da castração não é visto ou foi comprovado da mesma forma em felinos. Inclusive há uma dinâmica muito diferente na posse de um gato, geralmente polarizada entre o confinamento absoluto em residências teladas ou o livre acesso ao ambiente externo, sem supervisão do tutor. Isso traz novos desafios que devem ser solucionados com respostas diferentes.
Gostaria de ressaltar aqui que a castração ainda é o tratamento de eleição ou co-tratamento para diversas patologias do sistema reprodutor, como alguns tipos de tumores (uterinos, mamários como imunohistoquímica positiva para RP e RE, testiculares), hérnia perineal, hiperplasia prostática benigna, criptorquidismo, orquites e infecções uterinas (piometra), entre outras. Especialmente em relação à piometra, a alta incidência na espécie canina (algo em torno de 20%) ainda pode ser uma justificativa para a castração da cadela senil hígida (ainda sem a doença), depois de anos de exposição benéfica aos hormônios sexuais, haja visto que a maior parte dos problemas geralmente são associados à castração precoce.
Esse texto é um artigo de opinião, e não questiono a conduta dos meus colegas que estão em contextos tão diferentes. Felizmente, minha realidade do consultório mudou muito dos tempos que trabalhava no ambulatório do Hospital Veterinário da UFMG. Atendo hoje majoritariamente clientes bem esclarecidos, com alto grau de educação e interesse no investimento de tempo e recursos na saúde dos seus cães. A maioria dessa pessoas não teria dificuldades em manter seus animais não castrados em segurança dentro da residência. Reconheço que essas facilidades não são encontradas por muitos dos colegas que ainda atendem uma maioria de animais em condições precárias de cuidado, muitas vezes semidomiciliados. Para esses animais, mantidos sob baixo grau de vigilância, observação e confinamento, ainda vejo vantagens da castração o quanto antes, objetivando um aumento do tempo de sobrevida e bem-estar imediato do paciente, sempre desafiado por traumas e agressões soltos nas ruas. Porém, acredito que nunca a castração, isoladamente, mudaria a conduta irresponsável de um tutor. Esse mesmo animal encontra-se sob risco constante de inúmeros outros problemas, mesmo sem suas gônadas. Como digo, a melhor ferramenta em prol da posse responsável é a educação, e não o bisturi.
Meu objetivo, no fim das contas, é esclarecer minha opinião e contribuir com a discussão geral sobre o tema, incentivando uma troca saudável de experiências, seja no meio acadêmico, seja no consultório. Outras medidas de prevenção gestacional deveriam ser ensinadas na universidade (como esterilizações poupadores de gônadas, como histerectomias e vasectomias), assim como deveria existir um maior investimento em pesquisas de novos métodos, não cirúrgicos, que poderiam ser aplicados em programas de controle populacional. Aos interessados, recomendo procurar saber mais sobre a Parsemus Foundation e seus trabalhos de pesquisa com Vasalgel (polímero para inibição de passagem espermática) e aplicações de cloreto de cálcio intra-epididimais.
Como percebem, o assunto por hora está longe de ser esgotado, e as pesquisas, mesmo crescentes (selecionei algumas, aos mais interessados) ainda não nos permitem ter uma opinião conclusiva. Muito pelo contrário, quando estamos falando do sistema endócrino, estamos apenas arranhando a superfície de um mundo absolutamente complexo. E até assumindo a nossa ignorância, justifico com isso o modelo de medicina que escolhi praticar, baseado em observação do naturalmente fisiológico para a espécie e com mínimas intervenções medicamentosas ou cirúrgicas, sob o princípio do “primeiro, não prejudicar”.
No meu contexto, e para a maioria dos meus pacientes, é o melhor que posso oferecer. Quanto à normativa de um procedimento não natural, questiono a inversão da lógica científica: antes de indicar esse procedimento, deveríamos provar o quão seguro é, e não o contrário.
Mantenham-se curiosos!
ALGUMAS REFERÊNCIAS
1) Age at gonadectomy and risk of overweight/ obesity and orthopedic injury in a cohort of Golden Retrievers. Simpson, M. et al. PLOS ONE (Julho, 2019)
2) Long-Term Health Effects of Neutering Dogs: Comparison of Labrador Retrievers with Golden Retrievers. Hart, B.L. et al. PLOS ONE (Julho, 2014)
3) Effect of gonadectomy on subsequent development of age-related cognitive impairment in dogs. Hart, B.L. JAVMA (Julho, 2001)
4) Evaluation of the risk and age of the onset of cancer and behavioral disorders in gonadectomized Vizslas. Zink, M.C et al. JAVMA (Fevereiro, 2014)
5) Neutering of German Shepherd Dogs: associated joint disorders, cancers and urinary incontinence. Hart, B.L. et al. Veterinary Medicine and Science (2016, 2)
6) Desexing Dogs: A Review of the Current Literature. Urfer, S.R.* e Kaeberlein, M. Animals (2019, 9)
7) Exploring mechanisms of sex differences in longevity: lifetime ovary exposure and exceptional longevity in dogs. Waters, D.J. et al. Aging Cell (2009)
8) The effect of neutering on risk of mamary tumours on dogs - a systematic review. Beauvais, W. Cardwell, J.M and Brodbelt, D.C. Journal of Small Animal Practice, British Small Animal Veterinary Association (Junho, 2012)
9) A literature review on the welfare implications of gonadectomy of dogs. Houlihan, K.E. JAVMA (Maio, 2017)
10) Gonadectomy effects on the risk of immune disorders in the dog: a retrospective study. Sundburg, C.R. et al. BMC Veterinary Research (2016)
11) Adverse events diagnosed within three days of vaccine administration in dogs. Moore, G.E. et al. JAVMA (Outubro, 2005)
12) Long-term risks and benefits of early-age gonadectomy in dogs. Spain, C.V. et al. JAVMA (Fevereiro, 2004)
13) parsemus.org (informações sobre histerectomia, vasectomia e métodos alternativos de esterilização)
14) https://www.morrisanimalfoundation.org/golden-retriever-lifetime-study (site sobre o maior estudo conduzido sobre longevidade e fatores de risco para doenças, em curso)
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